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Comédia para falar sério

Como o gênero cinematográfico associado ao riso pode abordar temas complexos e caros da nossa sociedade.

 

Um paciente vai ao médico queixando-se de depressão, ansiedade, um verdadeiro desgosto pela vida. O médico, após analisar sua situação, diz: "Eu por acaso tenho a cura. O famoso palhaço Pagliacci está na cidade; vá ver o seu espetáculo, dê boas risadas e com certeza se sentirá melhor". O paciente levanta a cabeça, olha na sua direção e responde: "Mas doutor, eu sou o Pagliacci”.

Pôster da ópera “Pagliacci” em que se trabalha com o arquétipo do palhaço melancólico.

Esta anedota bem-humorada esconde complexos temas em sua ironia. Com origens ambíguas quanto a sua data e origem, a passagem se baseia na ópera homônima escrita pelo italiano Ruggero Leoncavallo de 1892. Ou seja, a piada envolvendo o contraditório palhaço melancólico já acompanha nossa sociedade a séculos. Aquele que faz rir, exímio no compromisso com a gargalhada, não consegue sentir um pedaço sequer da alegria que transmite para seu público. Não conhecemos o ser humano a fundo em tão poucas palavras, mas temos algumas pistas sobre quem ele é: Uma pessoa que sente a vida dura e cruel, sozinha em um mundo que já não faz mais sentido. Rir da ida de Pagliacci ao consultório faz com que o humor nos ajude a desabrochar reflexões maiores sobre nós mesmos.

A comédia é um gênero que sempre esteve presente dentro da cinematografia. Pequenos filmes trazendo situações “pastelão” - ou seja, de riso fácil pela fisicalidade apresentada nas cenas - datam ainda do século XIX. Esse tipo de comédia tátil pode ser encontrada em “L'arroseur arrosé”, de 1895 dos irmãos Lumière. Nele, um jardineiro tem o fluxo de água da sua mangueira interrompido propositalmente por outro personagem e tudo descamba para uma perseguição atrapalhada com tombos e sopapos. Da mesma forma, Thomas Edison realizou a obra de apenas 20 segundos chamada “Wringing Good Joke” (1899) em que uma criança amarra a cadeira de seu avô no intuito de derrubá-lo no chão.

Cena do filme dos irmãos Lumière em que a comédia reside na situação gerada pela ação e reação dos personagens.

Com o advento de novas tecnologias relacionadas ao cinema, a comédia expandiu suas possibilidades. Principalmente pelo acréscimo do som, ela passa a se subdividir em dezenas de categorias como a sátira, paródia, situacional, familiar, romântica, tragicômica, musical e afins. Contudo, algo presente em todas elas é a capacidade de relacionar o humor com um contexto maior. Ao proporcionar alívio cômico nas experiências mais mundanas possíveis (trabalho, casamento, viagens, etc), os filmes trazem reflexões complexas a partir de uma estética leve e aparentemente descompromissada.

Mas, por mais refrescante e positiva que possa ser uma abordagem bem-humorada sobre nosso cotidiano, o que acontece quando se busca relacioná-la frente a situações que, a priori, não são engraçadas? Mais ainda, quando abordam acontecimentos e temas relacionados a catástrofes, preconceitos, distúrbios, dramas pessoais e tragédias? Em particular, público e crítica vêm aclamando filmes que justamente trafegam por esta tênue e perigosa linha nas últimas décadas. Enquanto no final do século XX muito do cinema hollywoodiano ainda utilizava grupos minoritários de forma estereotipada para fazer graça, na virada para o XXI acontece uma mudança profunda em suas abordagens. Seguindo uma tradição iniciada por Charles Chaplin em filmes como “Tempos Modernos", novas comédias partem de um cenário problemático e confuso - que facilmente poderiam ser contemplados em verdadeiros dramalhões - para deles fazer humor.

É o caso do premiado filme italiano “A Vida é Bela” (2000) de Roberto Benigni. Nele, um pai tenta convencer seu filho de que o campo de concentração no qual estão presos é apenas um jogo. Ao longo da história, o protagonista explica as regras da “brincadeira” tentando extrair da crueldade formas de ludibriar a criança - se pedir comida, perde pontos; se fizer tudo o que os homens de uniforme lhe pedem, ganha pontos. O humor utilzado no filme não é uma resposta ao holocausto, mas sim uma maneira de seus personagens sobreviverem.

Cena do filme “A Vida é Bela” em que pela direta comparação, o humor potencializa ainda mais a crueldade.

Falar sobre a Segunda Guerra Mundial é sem dúvida desafiante, mas os alívios cômicos presentes na obra acabam por explicitar os acontecimentos brutais vividos na época. Sentimentos de perplexidade, contraste e distanciamento propostos por Benigni colocam ainda mais luz sobre a barbárie praticada. Exemplificando, na cena em que um soldado alemão pede a alguém para traduzir suas ordens em italiano, o pai se prontifica a fazê-lo. Ao invés de transpor a crueldade tal como falada pelo nazista, ele as modifica para parecer que, na verdade, são regras de um jogo divertido. O espectador vê ao mesmo tempo a confrontação entre essas duas realidades tão distintas e, por isso, a mensagem acaba ganhando ainda mais força.

Concorrendo ao Oscar de melhor filme em 2022, o longa “Não Olhe para Cima” faz semelhante abordagem só que, ao invés de falar do passado, projeta um futuro catastrófico pelo viés da comédia. Se os dois longas anteriores do diretor Adam McKay, “A Grande Aposta” (2015) e “Vice” (2018), apontavam sua sátira para a elite financeira e política dos EUA, agora o cineasta dirige seu sarcasmo à sociedade moderna como um todo. Dividindo opiniões quanto a qualidade, pertinência e tom do discurso, sua mais nova produção conta a história de dois cientistas que descobrem um meteoro prestes a se chocar com a Terra. Tentando alertar autoridades e imprensa para que providências sejam tomadas, acabam envolvidos em um jogo de interesses em que a ciência não é levada à sério frente ao imediatismo inerente a mídia, políticos, celebridades e opinião pública do nosso tempo.

Sátira de políticos em “Não Olhe para Cima” que não só fazem pouco caso da ameaça, como tentam tirar proveito da situação.

Tal premissa em nada parece divertida, porém nos personagens secundários criados por McKay é onde reside a graça. Neles, podemos estabelecer comparativos quase que diretos com figuras públicas que são representadas de forma cartunesca em suas falas e ações absurdas. O riso é amarelo, já que a correspondência com o que vivemos se faz escancarada cena a cena. Independente da percepção considerada por muitos como rasa e meramente propagandística do filme, é inegável a urgência do tema tratado pela produção da Netflix. Por se tratar de uma comédia, o assunto que poderia afastar muitas pessoas torna-se mais palatável e, com isso, alcança um número maior de espectadores. Gostando ou não, a sátira foi por semanas o assunto mais comentado no twitter - um paradoxo no mínimo engraçado, já que as redes sociais são igualmente alvo das críticas de McKay.

Cena do vídeo “Tributologia” feito pela Fauno Filmes.

Recentemente, em uma produção da Fauno Filmes, igualmente utilizamos da comédia ao tratar de um assunto sério. Em geral, conteúdos envolvendo impostos, tributos e corrupção são veiculados de forma sisuda e sóbria frente aos desdobramentos que tais temas causam em nossa sociedade. Contudo, a partir de uma abordagem bem-humorada, retratamos o quanto o cidadão comum brasileiro paga em um único dia em taxas. Seja na narração, roteiro, direção, iluminação, paleta de cores, atuação e edição, toda a estética empregada gera uma sensação de urgência por meio de um viés descontraído que, no final, engrandece ainda mais o impacto do assunto proposto. Para conferir é só clicar no link a seguir: https://vimeo.com/manage/videos/545314339



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