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Filmes preconceituosos e a cultura do cancelamento. Como lidar?

Atualizado: 31 de jan. de 2022



Os movimentos sociais em defesa da não discriminação de raça, cor, gênero e orientação sexual têm ganhado cada vez mais seguidores nas últimas décadas. Exemplos disso são a celebração anual do Orgulho LGBTQ+, muitas leis que restringiam direitos a esses grupos sendo revogadas e novas leis que visam a proteção dessas minorias, como a Lei Maria da Penha, que protege mulheres vítimas de violência doméstica, sendo aprovadas. E, mais recentemente, as manifestações que adquiriram um caráter mundial devido ao assassinato do americano negro George Floyd, morto por um policial que o imobilizou colocando um joelho em seu pescoço e acabou estrangulando-o até a morte. A aceitação desses movimentos fomenta diversos debates na atualidade sobre novas produções culturais que podem desrespeitar minorias ou não representá-las de acordo com a realidade. Mas e em relação às produções de antigamente? As histórias clássicas da infância, os primeiros longa-metragens, o uso do blackface no teatro e cinema. Como deve ser esse olhar para produtos problemáticos do nosso passado? Um olhar crítico ou compreensível?


Engana-se quem pensa que filmes como "...E O Vento Levou", "Gatinhas & Gatões" e "Alladin" não foram vistos como problemáticos por ninguém em suas respectivas décadas de 1930, 1980 e 1990. De acordo com a apresentadora do programa australiano de entrevista com cineastas The Screen Show, Lauren Carroll Harris, "O que acontece é que as pessoas que apontavam os problemas naquela época não eram ouvidas e sofriam gaslighting" (Gaslighting é uma forma de abuso psicológico que é usada para fazer a vítima duvidar das próprias convicções e memórias). Mas o que antes não era levado a sério é hoje alvo de duras críticas.


Um dos episódios mais controversos do cinema ocorreu apenas algumas décadas após a invenção da sétima arte. "O nascimento de uma nação" do diretor D. W. Griffith, lançado em 1915, é conhecido por ser tão inovador quanto racista. Em uma época em que o cinema ainda tinha muito a experimentar e descobrir, ele resolveu arriscar. De ângulos novos à invenção do "flashback", ele contribuiu muito para a estética do cinema contemporâneo e foi reconhecido por isso. O filme foi o primeiro a ser exibido na casa presidencial dos Estados Unidos da América. O longa de três horas de duração, entretanto, hipersexualiza homens negros e os coloca como um perigo para a segurança de mulheres brancas, enquanto celebra a fundação da Ku Klux Klan e a supremacia do sul escravocrata dos EUA.


De um lado, a tecnicidade vanguardista implantada por Griffith colaborou em termos a estética do cinema que vemos até hoje sendo implementada e, por outro, trouxe uma narrativa totalmente devotada em promover o racismo baseado no imaginário segregacionista da época. Por este motivo, nas palavras do diretor e ativista Ava DuVernay (reconhecido recentemente por seu trabalho que concorreu ao Oscar por “Selma”), “o primeiro blockbuster feito nos Estados Unidos ainda é capaz de despertar todo tipo de sentimento controverso. D.W. Griffith, um inovador diretor, que graças a sua enorme competência em filmar fez com que ele estivesse na vanguarda do cinema, no fundo, era igualmente racista. Se você minimamente acredita na igualdade entre as pessoas, ‘O nascimento de uma nação’ com certeza vai ser uma das piores experiências que você vai ver na vida. Mas, se você se interessa pela história do cinema, deve tentar superar esta asquerosa barreira para entender como chegamos até aqui”.

Legenda: Clássico adolescente de John Hughes, o filme é acusado de glorificar o abuso sexual, e até conta com a fala de um dos personagens masculinos "Eu poderia violá-la de dez maneiras diferentes se eu quisesse".


Em junho deste ano, outro roteirista, diretor e ativista dos direitos sociais, John Ridley, ganhador do Oscar de Melhor Filme por "12 Anos de Escravidão", pediu que a plataforma de streaming HBO Max retirasse do catálogo o filme "...E O Vento Levou". Segundo ele, o clássico glorifica a escravidão nos Estados Unidos e quando não está fazendo isso, perpetua um dos estereótipos mais dolorosos de pessoas de cor.


Esse episódio reativou a discussão sobre o que deve ser feito com produções culturais que transmitem mensagens racistas, misóginas, homofóbicas ou xenófobas. Por um lado, pode-se pensar que é necessário ter contato com obras problemáticas para que haja um debate crítico sobre o assunto. Pelo outro, manter obras preconceituosas em catálogos parece uma maneira de continuar gerando receita para quem as escreveu e não deixar uma mensagem clara o suficiente sobre o quão negligente é transmitir essas ideias para um público que busca entretenimento.


Quem pensa em manter esses filmes nos catálogos segue a linha de raciocínio de que os personagens e as situações retratadas nos filmes não precisam ser moralmente aceitáveis, e que os filmes não precisam ser a reprodução das crenças individuais do espectador. Esse público entende que produções audiovisuais devem ser consumidas criticamente, e em contato com conteúdos antagonistas é possível furar a bolha da realidade que o público vive. Além disso, assistir filmes controversos de tempos passados é importante para entender mais sobre a história do cinema e quem eram as vozes predominantes na sociedade em determinadas épocas e localizações. Além disso, este pode ser um bom exercício para aprender a olhar as coisas do passado com uma lente diferente daquela que encara o presente, tentando entender as crenças e costumes daquele determinado período da história.


Por último, deletar partes da história que foram controversas é também encarado como apagar conquistas da resistência. É o caso do filme/animação de comédia da Disney "A Canção do Sul" de 1946, que tem James Baskett como 'Tio Remus', contando sobre o folclore negro para crianças brancas de um dono de plantação durante o período da escravidão. Embora na época James Baskett nem pudesse participar da cerimônia do Oscar devido a segregação de negros e brancos nos Estados Unidos, em 1949 ele se tornou o primeiro ator negro a ganhar um prêmio da academia.

Legenda: Considerado como "O filme que a Disney não quer que você veja", a produtora nunca relançou o longa e não pretende adicioná-lo ao catálogo do Disney+, sua plataforma de streaming.


Quem defende a retirada de filmes preconceituosos dos catálogos alega que é muito difícil entender que um filme possui características controversas quando não há um conhecimento base sobre racismo, misoginia, homofobia e xenofobia. Quando crianças ocidentais assistem a versão de 1992 de Alladin, elas não entendem que os árabes estão sendo estereotipados, que Alladin fala e age como um estadunidense e que há uma grande falta de representação feminina. Há, ao invés disso, uma aceitação de que aquela é a realidade de pessoas do Oriente Médio. Além disso, manter filmes que reforçam esses pensamentos nos catálogos faz com que as produtoras continuem recebendo dinheiro por essas produções, não transmitindo uma mensagem tão clara quanto a rejeição.


Um exemplo recente envolveu o filme "Green Book", baseado na história real de um pianista negro que precisava contratar um motorista e guarda-costas branco para fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos na década de 1960. Ele contrata Tony Lip, um italiano residente da periferia de Nova Iorque que aceita o serviço. O filme recebeu duras críticas durante seu lançamento por promover a ideia do "branco salvador", focando mais na história do italiano do que do pianista, Dr. Don Shirley, e por ter uma produção composta quase completamente por pessoas brancas. Apesar disso, o longa recebeu o Oscar de Melhor Filme em 2019, competindo com produções de alto protagonismo negro como "Pantera Negra", do diretor Ryan Coogler e "Infiltrado na Klan", de Spike Lee.

Legenda: No discurso de aceite do Oscar de Melhor Filme de Green Book, apenas sete das 26 pessoas que subiram ao palco eram negras.


Este é um assunto complexo que envolve o protagonismo de grupos que ainda têm suas vozes abafadas de diversas maneiras por uma indústria que tende a preservar o conservadorismo em suas produções e pensamentos, como Hollywood. Por isso, é importante saber de quem se enxerga bem ou mal representado nas telas de cinema: qual é a sua posição a respeito deste tema? Você é a favor à retirada de filmes preconceituosos dos catálogos? Se sim, quem deve fazer esta curadoria? Se não, o acesso deve ser limitado ou facilitado tal como qualquer outra produção audiovisual?


Fontes consultadas:

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