Trilha sonora é só o começo para entender de que forma o áudio molda toda a nossa interpretação sobre um filme
Com a premiação do Oscar batendo na porta, listas e mais listas com os concorrentes são publicadas, comentadas e compartilhadas entre aqueles que querem assistir o maior número dos concorrentes antes da data. Melhor filme, melhor ator, melhor atriz, melhores coadjuvantes, melhor estrangeiro, diretor, roteiro original, montagem, enfim, as categorias são intermináveis e – muitas vezes – gera calorosas discussões sobre os possíveis vencedores. Contudo, dentro da extensa relação, alguns não recebem devida atenção ou até mesmo são descartados. Dentro dos chamados “prêmios técnicos”, praticamente tudo que se relaciona ao áudio nem sequer é entregue no palco do Dolby Theatre.
O som parece algo tão simples e natural que, às vezes, o consideramos como mero complemento dentro da narrativa. Entretanto, suas possibilidades oferecem uma experiência única carregada de sentido que conduz as expectativas e sensações do espectador tal como um manipulador de marionetes que sabe precisamente qual corda puxar para que algo aconteça. O áudio estimula a mente humana a pensar sobre o enredo, envolve sentimentos, percepção dos mínimos movimentos, dá mais intensidade às emoções, dos ruídos mais simples aos barulhos mais estridentes, contextualiza o que se vê na tela e cria cenários por conta própria.
Já no roteiro cinematográfico se encontram as primeiras considerações sobre quais sons são esperados para atingir aquilo esperado na cena. Posteriormente, na junção do diretor com toda a parte técnica das filmagens e pós-produção, o áudio finalmente se mescla ao visual e temos a completude do filme. Ele tem o poder de redirecionar as expectativas do espectador através de melodias, diálogos, efeitos e até o silêncio funciona como importante recurso para atingir os objetivos. Repare que – independentemente do gênero – se não se escuta nada gera-se o desconforto, tensão, inquietação e até comédia, forçando o público a se voltar para a tela na expectativa do que está por vir.
Seus usos são complexos e as possibilidades infinitas. Porém, antes de mais nada, cabe discorrer sobre alguns conceitos gerais envolvendo o som nos audiovisuais que influenciam decisivamente seu resultado. Diegese é um termo que se refere ao mundo interno criado na história. Tudo que ocorre na ficção é verossímil porque está dentro do universo diegético do filme, ou seja, faz parte da existência própria da narrativa. É a realidade dos personagens, o meio em que vivem e como reagem aos acontecimentos de forma contextualizada.
Desta maneira, som diegético são todos os áudios presentes no universo ficcional em que se passa a ação e tanto o personagem quanto o público conseguem escutá-lo. Além disso, ele pode ser “on screen”, ou seja, quando vemos/reconhecemos sua origem, ou “off screen”, em que somos capazes de identificar que pertencem ao universo em questão, mas não o vemos no quadro. Exemplificando, quem nunca se assustou junto ao protagonista com o barulho de passos no andar de cima em uma casa mal-assombrada?
O filme nacional de 2012, “O Som ao Redor”, é um grande exemplo no que se refere ao som diegético. O longa é escasso de trilha sonora, isso quer dizer que não há músicas voltadas para o público. Os personagens ouvem e interagem com os barulhos que os cercam, como o constante latido dos cachorros, passarinhos, vento, arrastar de móveis, trânsito, alarmes, aparelhos, enfim, o filme chega ao ponto de ter diálogos em uma lavanderia com o constante ruído de uma centrífuga em que a dificuldade dos personagens em conversar é a mesma do espectador em entendê-los. O diretor Kleber Mendonça Filho transforma o áudio em elemento narrativo imprescindível que faz com que o público fique igualmente angustiado, incomodado e reflexivo.
Do outro lado do espectro temos – portanto – os sons não diegéticos. Este tipo de áudio existe na narrativa, mas os personagens não podem escutá-lo, ficando seu conhecimento apenas para o público. A prática mais comum e de fácil entendimento é a trilha sonora, em que uma melodia é inserida na edição para gerar sentimentos frente aquilo assistido na tela. Famoso pelas músicas inseridas em seus filmes, o diretor Quentin Tarantino direciona e intensifica a compreensão da história pelas incomuns melodias selecionadas. Suas trilhas exercem forte papel em dialogar de forma síncrona com a narrativa, proporcionando continuidade para o enredo ao antecipar, contextualizar, emocionar e inquietar a plateia. No filme “Kill Bill”, por exemplo, toda vez que a protagonista Beatrix Kiddo encontra um vilão, o início da música “Ironside” de Quincy Jones toca de forma não diegética, ou seja, funciona como um claro aviso ao público de que um duelo está prestes a começar.
Para finalizar, os sons meta diegéticos correspondem ao estado de espírito do personagem, ou seja, sua mente e imaginário. Oriundo de alucinações, sonhos, pesadelos, flashbacks, vozes internas e personalidades coexistentes, não acontecem no contexto real da narrativa, pois somente o espectador e o personagem em questão o escutam. Dentre suas funções, uma das mais importantes é fazer o público emergir ainda mais nas questões relacionadas a sua personalidade, medos, perturbações, agonias, pensamentos, reflexões e angústias.
O lendário diretor Alfred Hitchcock usou dessa ferramenta - para muitos de forma pioneira - no filme "Blackmail" de 1929. A protagonista Alice comete um assassinato usando uma faca. Tempos depois, sua consciência pesa pela culpa, fazendo com que a personagem se sinta perseguida a todo momento. Em certa manhã, em uma conversa banal que acontece à mesa, a fala de suas amigas acaba sendo distorcida em sua mente. Alice para de prestar atenção no restante da conversa no momento em que escuta a palavra faca proferida por uma delas, sendo que, a partir deste momento, a protagonista e os espectadores passam a apenas ouvir a repetição consecutiva de “faca, faca, faca, faca...” mesmo com todo o entorno permanecendo indiferente. Ou seja, o público – e somente ele - passa a testemunhar seu remorso pelo som.
Com uso semelhante, o vencedor de melhor filme no Oscar de 2015, “Birdman”, utiliza sons meta diegéticos ao ponto deles, ao longo da narrativa, se materializarem em cena. Toda a trilha sonora foi feita unicamente utilizando de instrumentos percussivos. As batidas funcionam como metáfora da mente perturbada de Riggan Thomson. Crescendo em intensidade, volume e arritmia, no começo pensamos não passar de um recurso não diegético (ou seja, sons que só o espectador escuta) utilizada pelo diretor Alejandro González Iñárritu para nos instigar e provocar. Contudo, da metade para o final do filme, o personagem começa a enxergar um baterista em diversos lugares do cenário, revelando assim ao público que desde o começo do filme todas as batidas percussivas eram igualmente escutadas por Thomson. Ele olha na direção do músico, sabe que é uma ilusão e continua com a vida ruidosa em sua mente.
Aqui na Fauno Filmes, em uma produção recente, utilizamos de tal conceito para demonstrar o desconforto que se alojou na mente do nosso protagonista. O vídeo faz parte de uma campanha sobre o desperdício de água e se utiliza de um constante som meta diegético para demonstrar como o sentimento de culpa pelo descuido frente ao meio-ambiente pode nos “perseguir”. Após se preparar para dormir, o personagem deita e se mostra relaxado. Contudo, o barulho de uma simples gota d’água é o suficiente para tirar seu sono.
Assista o vídeo em: https://vimeo.com/465102184